sábado, 22 de abril de 2023

Yu-Gi-Oh! é O ponto fora da curva em shounen de jogos

Olhando para o enorme impacto cultural da franquia Yu-Gi-Oh! nos dias de hoje, é muito difícil perceber uma dura verdade:

Yu-Gi-Oh! Seria cancelado se não entrasse de cabeça no enredo centrado no Card Game.


Alguns de vocês devem estar pensando que eu sou maluco, mas basta ver obras com premissas parecidas com a de Yu-Gi-Oh pré-Reino dos Duelistas que dá pra ver que o ponto se sustenta.

Phi-Brain: Kami no Puzzle

Eu já fiz um post sobre esse anime na página do Facebook, no entanto, estamos pegando isso daqui como um caso de estudo. Phi-Brain: Kami no Puzzle é um anime original do estúdio Sunrise (franquia Gundam, Gintama) que se foca no protagonista e seus amigos resolvendo os mais variados tipos de quebra-cabeça e desafios lógicos em batalhas de vida ou morte nos emblemáticos Enigmas dos Sábios e Enigmas dos Tolos, presididos normalmente por organizações e grupos com interesses duvidosos e relacionados ao advento de alguém com o intelecto equiparável ao de um deus: O Cérebro do Filósofo (ou em inglês, "Philosopher's Brain", abreviado como "Phi-Brain", o título que dá nome à obra). Foi transmitido na NHK, uma emissora pública com conteúdo normalmente educativo, o que torna a obra tecnicamente um "desenho educativo", buscando incitar nos espectadores o encanto por quebra-cabeças, puzzles, charadas e outros desafios similares.

Com uma trama de boa qualidade, puzzles diferenciados o bastante, uma trilha sonora excelente e um elenco de voz de peso, Phi-Brain rendeu 3 temporadas de 2 cours. Parece um oxímoro eu citar um exemplo desses pra dizer que "Yu-Gi-Oh! ia fracassar se continuasse não focando num jogo só", mas vá numa feira de anime local e pergunte pra umas 100 pessoas se elas pelo menos ouviram falar de Phi-Brain. Eu duvido que você não consiga contar nos dedos as pessoas que te responderam "sim". Vários motivos entram na fórmula, mas os que eu sinto que são os mais pesados pra definir seu sucesso geral são:
  • Lançado em 2011. Entre 2011 e 2013, saiu uma quantidade imensa de pedradas em questão de anime. Madoka, Steins;Gate, Anohana, Chihayafuru... Phi-Brain poderia ser mais uma dessas? Sim, mas não foi pelos motivos abaixo.
  • O visual e animação não são tão bons para a época. Eu particularmente amo esse estilo de olhos grandes e redondos do Yohei Sasaki (um animador e diretor de animação veterano do estúdio, principalmente conhecido por suas cenas de ação em Gintama), e a grande variedade de estilos de cabelo das personagens, mas tem gente que acha isso bem feio e leigo, como se tivesse saído daquele infame livro sobre como desenhar mangá da editora Scholastic. A animação realmente não é das melhores. Não é uma animação cagada, mas também não é extremamente fluida tipo o Yuma fazendo altas acrobacias em Yu-Gi-Oh! ZEXAL (que saiu no mesmo ano, diga-se de passagem).
  • É desse livro aqui que eu tô falando.

  • Puzzles são um divertimento de nicho. É claro que todos nós já fizemos palavras-cruzadas ou caça-palavras (alguns até sudoku) pelo menos uma vez na vida, mas existem muitos outros jogos que se encaixam no gênero, e nem todos são tão conhecidos. Isso se dá especialmente pelo fato de que puzzles são vistos como passatempos pra "pessoas inteligentes" e, se você não consegue resolver um, melhor nem tentar outros (o que obviamente é o contrário da mensagem de Phi-Brain), você é burrokkkkkkkkkk.

Cipher Academy


O segundo caso de estudo é um mangá recente publicado no aplicativo MANGAPLUS by SHUEISHA. Escrito por NISIOISIN (Monogatari Series) e ilustrado por Yuji Iwasaki, Cipher Academy (Angou Gakuen no Iroha) conta a história de Iroha Irohazaka, um garoto que entra na recém-fundada Cipher Academy, uma escola de Ensino Médio-Técnico para futuros decifradores de códigos sob a premissa de que guerras são vencidas principalmente pelas inteligências ao invés das armas. O problema é que Iroha é péssimo em decifrar códigos, tendo entrado na escola por uma cota de que cada turma deve ter no mínimo um menino, uma vez que decifrar códigos era visto como um trabalho principalmente feminino no Século XX, mas os tempos mudaram. Durante seus estudos na biblioteca a fim de resolver seu primeiro puzzle, Iroha ajuda uma interna a se esconder da melhor aluna da turma, que a estava perseguindo. Essa interna se revela como a professora Kogoe Horagatoge da turma 1-M, que precisa de uma parceria a fim de decodificar a chave para um tesouro escondido debaixo da escola avaliado em 1 bilhão de Morg (uma criptomoeda). Com tal dinheiro, ela diz que poderia parar a maioria das guerras do mundo. Para isso, ela desenvolveu uma "arma de decifrar códigos" e a deu para Iroha a fim de que este se tornasse seu ajudante.

O mangá ainda está em publicação, no capítulo 20 enquanto eu estou escrevendo isso, passando pelo seu primeiro arco. As artes são lindas e as personagens são divertidas de se acompanhar. O problema é a grande quantidade de bagagem cultural que você precisa ter pra entender várias coisas em Cipher Academy, principalmente partes importantes dos enigmas se você quiser resolvê-los por conta própria. O autor até bota umas notas de autor debaixo dos quadrinhos, mas isso nem sempre resolve o problema e parece um monte de exposição vomitada nos seus olhos. Nishio adora trocadilhos com a língua japonesa e esses nem sempre são fáceis de traduzir. Inclusive, a batalha de código dos capítulos 10 a 11 foi o ponto de quebra do primeiro tradutor da série. Para contexto, a batalha consistia em ter uma metade sorteada do silabário dos kanas indisponível pra você montar suas frases. Os envolvidos fariam rodadas de perguntas e respostas, e quem acabasse claramente incluindo um dos kanas que lhe fossem proibidos, perdia.
E ainda assim, era um capítulo de exposição sobre as personagens.

Ironicamente, esse problema de ser um "mangá muito difícil de traduzir" foi o que deu o maior pico de popularidade que Cipher Academy teve até hoje. Apesar de ter exposição e desenvolvimento de personagem visível por parte do nosso querido Iroha, a maneira com a qual as batalhas são conduzidas acabam sendo muito excludentes pro público geral. Não que alguém só possa gostar de algo se conseguir entender até os mínimos detalhes, mas nós não gostamos de ver um grande desafio que obviamente não somos capazes de vencer. Muitas vezes, você pode acabar se sentindo muito burro lendo Cipher Academy, tendo que reler o capítulo várias e várias vezes pra entender pelo menos o básico do fio de lógica que as personagens seguem na hora de resolver um enigma. Eu gosto da obra e quero ver ela sendo terminada da maneira certa, no entanto, se continuar com esse tipo de resolução, eu tenho certeza que Iroha da Academia Críptica vai comer poeira daqui a menos de 10 capítulos. Estamos falando de uma publicação da Shounen Jump, a revista mais vendida do Japão, e eles não brincam em serviço quando percebem que uma série não está fazendo números como deveria. Inclusive, já existem pessoas esperançosas de que Cipher Academy seja cancelado.



O terceiro mangá desta lista parece me refutar por completo. Kakegurui é um shounen de apostas, e possívelmente o que a maioria dos fãs de anime e mangás leigos pensam quando ouvem falar de "anime e mangá de apostas". O sucesso da obra é indiscutível, rendendo vários mangás spin-offs, anime, adaptação live-action, e uma gama de roleplayers retardados no seu Amino de RPG médio. São jogados vários jogos, nenhum é especificamente marketável, e mesmo assim todo mundo sabe quem é Yumeko Jabami ou Mary Saotome, mas ninguém saberia quem é Yuugi Mutou se Yu-Gi-Oh seguisse nessa mesma fórmula de "jogo da semana". Por quê?

A resposta é que Kakegurui é muito mais uma série psicológica do que uma série de jogos. Há jogos nela? Sim. Há altas apostas nesses jogos? Sim. No entanto, a trama avança devido à quebra do equilíbrio causado pela entrada de Yumeko na nova escola. O Conselho Estudantil instituiu um sistema de doação, onde as 100 pessoas que doam menos perdem seu status como ser humano. O sistema é então complementado pelas apostas na escola, onde ganhar mais apostas significa poder doar mais e portanto ganhar mais prestígio. O ponto é que, como todo mundo lá é rico, dinheiro não tem tanto valor percebido quanto tem em uma série de apostas como Kaiji ou Usogui, por exemplo. O verdadeiro valor é a capacidade de assumir o leme de seu próprio destino. Nossa protagonista entende isso muito bem, mas se torna uma força da natureza ao não ligar para como sua posição na escada hierárquica vai ficar após o jogo. Ela só quer o pico de dopamina pela chance de ganhar muito ou perder tudo a níveis sexuais, e isso acaba desconstruindo essa hierarquia. A história mostra muito mais as reações das pessoas ao enfrentarem Yumeko do que a reação de Yumeko ao enfrentar oponentes cada vez mais "fortes". Os jogos só estão ali como dispositivos de enredo menores, e eu particularmente acho que esse é um jeito certo de se fazer uma história infantojuvenil onde as personagens jogam vários jogos...

Só que Yu-Gi-Oh! não fez isso enquanto estava em sua fase episódica.

Nos primeiros capítulos, os Jogos das Trevas são consequências pra quem agiu mal com Yuugi ou seus amigos. É claro que eles são boas ferramentas de exposição, mas não existem muitas consequências a partir do resultado do jogo. Não parece haver crescimento. O "Outro Yuugi" é bonzão nos jogos. Ponto. Pra falar a verdade, o primeiro arco de Yu-Gi-Oh! só foi começar no capítulo 13, e mesmo assim, foi um arco bem curto, contando com apenas 8 capítulos. É o arco do Shadi, onde ele coloca Yugi e seus amigos em situações de risco para ver se ele realmente herdou os poderes do Enigma do Milênio.
"Memória ou Morte", a segunda parte do Jogo das Trevas entre Shadi e Yugi

Esse é arco que põe o enredo de Yu-Gi-Oh! nos trilhos para um "objetivo final a ser alcançado", isto é, quem é  Yuugi? Quem é essa outra parte do Yuugi? Quais são as outras Relíquias do Milênio e como elas vão ser relevantes para as perguntas anteriores? Por que os portadores das relíquias usam jogos para punir os transgressores? A história do mangá é definida a partir deste ponto como uma jornada de auto-descobrimento. O problema é que depois disso ainda existem muitos capítulos episódicos, então enquanto a gente fala "legal, a gente tem um motivo pra continuar acompanhando a história aqui", a gente continua nessa lenga-lenga que é expositiva de um bom modo, sim, mas que não nos acrescenta muito no enredo central da obra. Dos 59 capítulos pré-Reino dos Duelistas, apenas 33 pertencem a algum arco. Apenas 3,5 capítulos a mais que a metade. Os jogos eram vários? Sim. Eles eram meios de mostrar as forças e fraquezas das personagens? Com certeza (inclusive, esse é o principal acerto de Takahashi nos jogos do mangá, falaremos disso mais tarde). Mas existem grandes consequências do Jogo das Trevas na maneira que as personagens se comportam? Não. Essa foi a falha que poderia ter custado o mangá se alguma coisa não acontecesse.

Então, o que aconteceu?
Monstros de Duelo.


Créditos: Yugioh Professional (embora eu tenha minhas dúvidas quanto a isso)

Monstros de Duelo foi, em poucas palavras, o milagre que salvou o mangá de Kazuki Takahashi de ir pro esquecimento, e não só isso, se tornar um fenômeno mundial nos anos 2000. A história vocês provavelmente já conhecem: Começou como um jogo parodiando Magic: the Gathering nos Capítulos 9 e 10, aí um monte de criança achou o jogo legal e enviou cartas pra Shueisha perguntando como se joga o jogo mais a fundo, aí o Takahashi fez o Kaiba aparecer de novo pra poder aparecer o jogo de novo, aí teve o Reino dos Duelistas e o mangá mudou de foco quase que inteiramente pro famigerado "baralho do diabo". Vocês conseguem ver que a mudança de foco do mangá foi obviamente uma decisão maior dos editores. Nos 59 capítulos iniciais, Takahashi tentou botar outros jogos que envolviam "lutas entre monstros" pra emplacar, mas nenhum deles chegou perto da popularidade do nosso querido vício em apostas disfarçado de jogo infantil. E no fim das contas, parece que foi uma mudança para melhor. O Arco do Reino dos Duelistas e da Cidade das Batalhas tinham personagens legais, objetivos bem definidos e que contribuíam para as questões já levantadas na narrativa, além de um grande espaço pra desenvolvimento de personagem. Considerando o Forbidden Memories, é certo que o Takahashi já sabia que rotas ele queria tomar escrevendo o mangá, e tinha que colocar as ideias que ele não ia usar em outro lugar. Fora isso, um jogo de cartas colecionáveis funciona incrivelmente bem como um sistema de magia em shounen de lutinha, pelos motivos abaixo:

  • TCGs têm uma lista de cartas que está periodicamente se expandindo, o que significa que cedo ou tarde, novas cartas têm que aparecer. Isso é bom porque abre espaço para diferentes personagens jogarem com diferentes tipos de cartas e estratégias, e não só isso, permite que personagens já conhecidas mudem as cartas e estratégias que estão jogando a fim de refletir uma mudança em sua constituição. Uma batalha bem-pensada em um shounen que usa TCGs como resolução do conflito raramente vai ser reduzida a "quem tem o porrete que bate mais forte".
  • O primeiro TCG, Magic, já era uma representação de uma batalha entre dois magos, o que é muito útil para conciliar com o já existente misticismo sobre o Antigo Egito, que é um dos focos narrativos de Yu-Gi-Oh. Fora isso, o Japão de 1996 via seu primeiro boom de TCGs, com títulos como Pokémon e Monster Collection. Jogos que justamente focavam em batalhas entre monstros, o que era um prato cheio tanto pra Takahashi quanto pra crianças que queriam imitar os feitos de Yuugi e seus companheiros de jogo, mas que nunca ouviram falar de Magic (até hoje, Magic é um título bem underground no mercado japonês do gênero, mesmo com a WoTC movendo céus e terra pra atrair público de lá).
  • Quem define os limites mecânicos do jogo são os próprios escritores dos duelos. Algo como uma múltiplicação infinita de monstros, campos pré-existentes que reagem a cartas jogadas pelos jogadores ou uma fusão gerada automaticamente entre dois monstros nunca seria processada com perfeição num TCG físico (num digital talvez, mas economizar trabalho também é precioso). No entanto, o céu é o limite quando é uma história fictícia. Você não precisa fazer o jogo ser 100% reproduzível no mundo real. Só precisa contar uma história interessante por meio das cartas apresentadas no duelo. Essa é a graça dos duelos no Reino dos Duelistas, e por mais que por pressão marketista as regras do jogo real tenham que ser seguidas com mais afinco, esse estresse das limitações nunca foi embora de verdade. Em 5D's, a Clear Mind só consegue ser alcançada com alta velocidade, e por isso os duelos nas motos são necessários. No mangá de ZEXAL, o Frankenstein nunca ataca monstros femininos. Ainda em ZEXAL, a forma ZEXAL II pode desbloquear os "verdadeiros efeitos" de uma carta. Em SEVENS, o Yuuga pegar um meteorito com o disco de duelo dele de propósito pra que a carta da Fusão fosse incluída no baralho no meio do duelo não é considerado uma infração (inclusive o caso é previsto no manual de regras compreensivas).
Pela soma de todos esses fatores, o jogo acaba se tornando um ótimo canal para a exibição das forças e fraquezas de personalidade e caráter de uma personagem, fora outros poderes sobrenaturais, e isso se encaixa perfeitamente com a premissa dos Jogos das Trevas. Acima de tudo, as regras que Takahashi institui na versão do mangá do jogo são muito simples, o que significa que existe muita liberdade para o que uma carta pode ou não pode fazer, e ele se utilizou disso muito bem para fazer as cartas "serem os poderes" das personagens, essencialmente criando lutas nas quais não se trocam socos ou chutes físicos, que era exatamente o desejo do autor ao criar Yu-Gi-Oh!. Com isso, você tem a atenção do público que quer ver lutas interessantes nas quais as personagens não vencem simplesmente porque "são mais porradeiras", e também tem a atenção do público que quer ver poderzinho rolando solto, criando uma experiência similar a de JoJo's Bizarre Adventure. Por mais que o Card Game seja de certa forma um fardo que a franquia tem que carregar, foi esse fardo que tornou Yu-Gi-Oh! não só uma experiência única, mas também o ponto de referência pra muitas obras que se utilizam de jogos pra resolver seus conflitos. É exatamente por isso que eu o considero O ponto fora da curva em shounen de jogos.

Como considerações finais, eu acho muito interessante como a franquia Yu-Gi-Oh! é experimental demais para o seu bem. Ela começou a experimentar com tudo o que podia pra sobreviver, e isso a levou a estar no Top 30 mangás mais vendidos de todos os tempos de sua editora, e movendo entre 5 a 10 milhões de dólares desde a sua primeira aparição na mídia. Por outro lado, muitas de suas inovações são vistas com maus olhos por sua própria fanbase. É algo que vive mudando, e eu acho que isso é o que torna a IP interessante. Eu espero que você tenha gostado desta postagem. Um abraço, fique com Deus e até a próxima.

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