Não, você não leu errado. Este artigo tem como objetivo mostrar Yu-Gi-Oh, o jogo de cartas, com uma outra perspectiva. A perspectiva de um gênero de jogo que normalmente é antagônico em relação a Card Games: Jogos de Luta.
Jogos de Luta geralmente são vistos como o oposto polar de Jogos de Carta, porque a nível superficial eles desenvolvem habilidades radicalmente diferentes uma da outra. Jogos de Luta desenvolvem reflexos, ação rápida. Jogos de Carta desenvolvem estratégia, algo que precisa de tempo pra ser executado propriamente. No entanto, à medida que você afunda nesses tipos de jogos, você percebe que eles têm mais similaridades do que o olho encontra.
1 — Curva de Aprendizado
Tanto jogos de luta quanto Yu-Gi-Oh! são jogos com uma curva de aprendizado bastante íngreme. Quando você é introduzido a um desses jogos, geralmente você vai ter um tutorial pra aprender as mecânicas base do jogo. Muitas vezes, algumas dessas mecânicas base vão ser ignoradas pelo jogador iniciante e, por mais que só usar algumas das mecânicas seja necessário pra completar o Modo História, quando você enfrenta oponentes reais a estória é outra. Quando você enfrenta jogadores humanos, se torna cada vez mais evidente que você, joãozinhogamer321 que acabou de derrotar o Kagemaru no Tag Force 1, não sabe lá muita coisa de Yu-Gi-Oh! pra manter um jogo a mesmo nível dos oponentes. O próprio Kazuki Takahashi sabia disso, escrevendo no editorial do Volume 19 (Duelist Vol. 12):
Há um problema ao tentar expressar a a diversão de jogos de cartas sob a forma de um mangá. Em um jogo de cartas real, quanto mais próximos os níveis de habilidade dos jogadores são, mais divertido é... Mas em um mangá, você precisa manipular a balança de poder para mostrar como o protagonista pode vencer oponentes avassaladores. Então não fique zangado se as pontuações ou efeitos nas cartas do mangá são um pouco diferentes da versão do OCG!
É divertido quando você encontra oponentes com níveis de habilidades e alcance de poder dos decks similares, assim como é divertido você encontrar oponentes com níveis de habilidade e alcance de poder das personagens similares em jogos de luta...
MAS NÃO É FÁCIL.
Por jogos de luta e TCGs em geral serem um divertimento de nicho, é difícil encontrar oponentes que estejam em níveis similares de habilidade. No Brasil isso também se intensifica porque videogames e Yu-Gi-Oh! são caros, e as empresas não têm lá as melhores práticas de negócio. Mesmo a nível de loja local pode haver um skill gap gritante. Isso pode ser resolvido ao tomar algumas medidas mais amigáveis ao casual, sem necessariamente ferir o competitivo (ver o post anterior) para tornar a adesão do público um pouco maior. Esses jogos não são difíceis em si, mas são difíceis no que diz respeito a ter conhecimento técnico sobre ele o bastante para aproveitá-lo bem, e por mais que os jogadores tenham que ser os atores principais em divulgar esse conhecimento técnico do jogo, as próprias empresas poderiam dar um empurrãozinho pra isso. No Japão, existem eventos oficiais de Yu-Gi-Oh! onde você simplesmente joga partidas livres. Você pode trazer quantos decks quiser, pode jogar quantas vezes quiser e com quantas pessoas quiser dentro do limite de tempo do evento. Você pode ganhar prêmios por simplesmente jogar um certo número de partidas, ou ganhar um certo número delas, etc. Você pode até mesmo contar com Professores, um cargo oficial de jogadores experientes cuja função nos eventos é ensinar a jogar e dar conselhos pra melhorar as habilidades de quem já sabe jogar. Desse jeito, a curva de aprendizado fica mais suave de ser enfrentada, com a evolução podendo ser bem mais rápida, mas ainda sim dolorosa. Não se engane, o caminho pra ficar bom em FGs e TCGs é cheio de derrotas amargas.
2 — Interação e Troca de Golpes
Se a gente parar pra pensar, desde o começo Monstros de Duelo foi um jogo com a troca de golpes em mente. A principal prova disso é a mecânica de batalha, onde todos os monstros tem uma versão levemente modificada de Atropelar em Magic: the Gathering. Essa regra possívelmente foi escrita pra encorajar os jogadores a seguir jogando monstros tão fortes quanto possível a cada turno, enquanto lentamente reduziam os PVs um do outro alternadamente. Nos jogos de luta, um conceito parecido é o da Fase Neutra: Um ponto dado no jogo onde nenhum dos jogadores tomou definitivamente o papel ofensivo (botar pressão no oponente) ou defensivo (resistir a essa pressão até surgir uma oportunidade de voltar à Fase Neutra). Quando não é possível jogar um monstro mais forte, você recorre ao modo de defesa, marcando o fim da Fase Neutra. No Yu-Gi-Oh! moderno, a Fase Neutra não é mais tão focada na Fase de Batalha, mas sim nas interações de efeito na Fase Principal, interações essas que geralmente criam uma corrente de efeitos como uma troca de golpes mais metafórica (Desires < Ash < Called < Belle < Crossout < ...) e que quando não são interrompidas pelo oponente criam uma sequência de efeitos informalmente conhecida como combo, assim como nos jogos de luta onde esse termo é dado a golpes conectados em sequência em um curto período de tempo. A Fase Neutra termina quando um jogador claramente possui dominância sobre o campo, normalmente sob a forma de negates ou floodgates. Assim como jogos de luta tem iniciadores, extensores e finalizadores de combos, Yu-Gi-Oh! os têm.
3 — Memorização e Jogos Mentais
Tanto Yu-Gi-Oh! quanto jogos de luta requerem certos estudos de memorização a fim de melhorar suas habilidades neles. Você tem que ver quais decks/personagens se adequam melhor ao seu estilo geral de jogo, depois disso você tem que decorar pelo menos alguns de seus cursos de ação mais fáceis e básicos, dos quais você pode posteriormente evoluir da sua maneira. Pra melhorar ainda mais, você tem que pelo menos ter uma ideia geral do que outros decks ou personagens fazem, te recompensando à medida que você decide estudar sobre potenciais matchups. Aplicar isso em situações reais requer leitura do estado do campo e da mente/emoções de ambos os jogadores, e aí começa um metagame mental, onde a jogada ótima é enganar com sucesso seu oponente em gastar os recursos dele impedindo que você siga por uma rota pra chegar no estado desejado quando você na verdade tem recursos suficientes pra seguir por outra rota que ele possivelmente não viu. Quanto menos informação você revelar pro seu oponente, melhor. Isso conecta muito com o primeiro tópico. Chegar a essa sensibilidade requer muito treino, enfrentar os mesmos oponentes ou oponentes parecidos de novo e de novo, como diria Stevie Blunder: "Playtestar antes de um torneio grande não é ficar bebendo cerveja com os seus amigos na madrugada anterior ao torneio. É jogar com diferentes possibilidades, assumindo sempre o cenário menos favorável".
Obviamente, um mau treinamento nesse metagame mental (simplesmente ignorar esse aspecto dos jogos, por exemplo) ou mesmo jogar esses jogos mentais por um longo período de tempo vai te deixar exausto, vai minar a sua alegria de jogar o jogo, e é exatamente por isso que em alguns torneios de jogos de luta existe uma quantidade considerável de explosões emocionais, quer seja do vencedor ou do perdedor. E mesmo em salas casuais, tem gente que, falhando em reconhecer os pontos onde poderia ter melhorado, vai botar a culpa em tudo e todos exceto em si mesma.
Adaptando pra Yu-Gi-Oh!: Meu Deck brickou E se não brickou, você tava trapaceando E se não tava, você tava jogando com algo que não requer habilidade E se não tava, não é divertido jogar assim E se é, você só liga pra vencer.
A insistência mecânica de jogos de carta em eventos aleatórios aumenta esse fenômeno de jogos mentais, mas não é exatamente algo que não tem um espelho em jogos de luta. Daisuke Ishiwatari, idealizador principal da série de jogos de luta Guilty Gear, disse em entrevista à 4Gamer (em inglês) antes do lançamento do título mais recente, Guilty Gear Xrd ~Strive~:
4Gamer: Em seguida por favor nos permita falar sobre a gameplay. Comparado à série Xrd, eu senti que o dano causado pelos jogadores era bem alto. Você planeja em manter esse nível de dano?
Ishiwatari: Certamente a quantidade de dano causada aumentou, mas ao ver nossos dados dos jogos de testes, a duração de cada partida não mudou tanto quanto a dos títulos anteriores. Isso mostra que a Fase Neutra e os Jogos Mentais se expandiram.
4Gamer: Certamente eu não obtive a impressão de que as partidas eram curtas a partir dos jogos que eu joguei.
Ishiwatari: Os títulos até agora se focavam em fazer longos e difíceis combos para causar grandes quantidades de dano, mas a fim de realizar essas técnicas uma grande parcela de tempo em prática era necessária. Nós queríamos revisar esta parte do jogo, e tornar mais fácil ter a chance de vencer contra jogadores de níveis maiores. É claro, estamos nos certificando que o jogo recompensa jogadores que gastam tempo praticando, então por favor não se preocupem.
4Gamer: Em títulos anteriores, seu sucesso estava ligado à sua habilidade de fazer combos e preparações altamente difíceis. Ao simplificar esta parte, eu vejo que você está colocando mais ênfase nos jogos mentais.
Ishiwatari: Até agora, eu mirei em criar jogos de luta que se jogam como Shougi (xadrez japonês). Shougi é um jogo onde se há um vão entre as suas habilidades e as habilidades do oponente, você quase nunca vai perder. No entanto, a fim de combinar com tendências recentes, era necessário mudar essa parte. Eu não sei se isso é um exemplo próprio, mas eu acho que eu estou mirando em criar algo próximo a Mahjong. Gameplay onde movimentos confiantes, leituras e sorte podem permitir que alguém tome a chance de vencer.
4 — Faz sentido que Yu-Gi-Oh! seja um jogo de luta.
Eu já bati nesta tecla várias vezes, mas não custa lembrar: Yu-Gi-Oh! é um shounen de lutinha. As cartas não passam de veículos para demonstrar as forças e fraquezas de cada personagem. E se estamos mexendo com "forças", então por que não dizer "poderes", "magia", "golpes de assinatura", etc.? No fim das contas, monstros são os golpes, mas também são as esquivas. Magias e Armadilhas baixadas são as leituras prevendo certos golpes. Efeitos de monstros geralmente são iniciadores, extensores e finalizadores de combos. Você vence ao exercer tamanha pressão no oponente, distribuida pela duração do jogo, a ponto de ele não ter saída. Um xeque-mate, por assim dizer. E mesmo quando as coisas parecem difíceis, a confiança em tudo o que o levou àquele momento é o que impulsiona o protagonista a não perder. Ele mesmo, os amigos, o propósito de descobrir seu passado, o destino, poderes divinos etc. fazem com que ele encontre a luz no final do túnel e, com uma mente limpa e resoluta, consiga vencer seu oponente, criando momentos icônicos:
No fim das contas, o nosso oponente nesses tipos de jogos somos nós mesmos, mais do que quem está sentado ao outro lado da mesa. Muitas vezes nós só podemos culpar legitimamente a nós mesmos pelas coisas ruins que acontecem com a gente, e então abrir espaço em nós mesmos para a melhora e uma boa relação com o próximo, representado pelo oponente, que também representa a nós mesmos. Takahashi também iria dizer, no seu editorial do Vol.7 do Millenium World, que "os oponentes com os quais as personagens jogavam refletiam seus corações". Então, pela derrota, nós percebemos que somos falhos e precisamos melhorar para melhor interagir com os outros, e na vitória nós provamos que superamos a nós mesmos, e por sermos mais fortes, podemos nos dar o luxo de sermos mais gentis com os outros. Essa jornada só termina quando a gente morre.
Conclusão
Muito obrigado por ter lido até aqui. Eu espero que ao fechar esta aba você tenha obtido um novo conhecimento não só sobre Yu-Gi-Oh! e jogos de luta, mas também sobre a filosofia que eles trazem para a vida: Uma chave para voar ao Jogo Transcendente. Fique com Deus e até a próxima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário